Uma obra sempre nova

24/01/2013 14:03

Fonte: Portal da Comunidade Shalom

 

 

Um dos Escritos mais importantes da vocação Shalom, diz:

 O Senhor nosso Deus, que merece todo amor do mundo, realiza uma obra no meio de nós: uma obra nova, um caminho novo. Este caminho é real e cada dia que passa eu o sinto concretizar-se mais fortemente em meu coração. É algo novo, é algo maravilhoso. Sinto como Deus querendo presentear ao mundo mais uma manifestação de Seu poder criador. Deus quer ardorosamente abrir uma nova vereda pelo deserto e assim formar um povo, um povo eleito, formado por suas mãos para atravessá-la, percorrê-la, assumi-la em seu viver. Nós somos este povo. Deus nos chamou a esta magnífica vocação É um caminho de e para a felicidade.

 Cada vez que leio este texto, fico encantada ao ver a mão de Deus que, há vinte e três anos atrás, nos presenteava com tamanha profecia pelas mãos de um “menino” de 23 anos! Ao mesmo tempo, espanto-me de ver, neste e nos outros escritos tamanha acuidade teológica e adequação ao Magistério da Igreja e ao que nos ensina a espiritualidade da vida consagrada. É bem verdade o que diz São Paulo sobre tesouro em vasos de argila, imagem retomada por um dos nossos escritos e por Bento XVI, quando, em sua primeira aparição no balcão da Basílica de São Pedro nos falava que Deus é mestre em trabalhar bem com instrumentos inadequados.

 Mas vou guardar pelo momento minha estupefação cada vez que leio estes textos verdadeiramente inspirados, tesouros para nós, para falar-lhe um pouco desta Obra Nova que é a Comunidade Shalom, agora com 23 anos.

 Como você sabe e a história da vida consagrada demonstra, quando Deus faz surgir em sua Igreja um carisma autêntico, ele tem algumas características muito claras:

é uma profecia para a Igreja e para a humanidade

é uma resposta de Deus para a Igreja naquele tempo histórico

atrai pessoas que se identificam com ele através da vivência dos que a ele aderiram

Há ainda outras características, que você pode conferir no Dicionário da Vida Consagrada, ed. Paulinas, ou acessando o site desta revista e pedindo que lhe enviem o material. Para a finalidade deste artigo, estes três são suficientes.

É que quero enfocar principalmente o caráter profético do Carisma Shalom. O escrito diz isso claramente: O Senhor nosso Deus, que merece todo amor do mundo, realiza uma obra no meio de nós: uma obra nova, um caminho novo. Sem atribuir a si uma obra que é de Deus e sem conhecer, naquele tempo, nada acerca da teologia da vida consagrada, o Escrito afirma que Deus quer fazer de nós uma profecia, isto é, funda um carisma, uma obra nova, um caminho novo, um carisma novo, uma nova família na Igreja. Mas não é o fato de o texto falar sobre uma obra nova que faz com que ela aconteça. É a mão de Deus que, nestes 23 anos se faz presente em todos os passos de nossa história, de forma soberana.

Graças a Deus, no tempo em que Obra Nova foi escrita, nem tínhamos idéia do que significava um carisma novo e, portanto, profético – até hoje dá um “frio na barriga” – nem pretendíamos fundar alguma coisa. O Moysés costuma dizer que, quanto ao Shalom, ele “se declara inocente”. O fato é que Deus se utilizava, como diz o Santo Padre, de “instrumentos imperfeitos”, no nosso caso, imperfeitíssimos, para algo novo na Igreja. E, como Ele merece todo amor do mundo, ainda que inocentemente, fomos dizendo o nosso pequeno “sim” de cada dia.

Mas, afinal, qual a grande “novidade” do Carisma Shalom? Veja como é interessante o que nos diz o texto dos Escritos:

Este caminho é real e cada dia que passa eu sinto concretizar-se mais fortemente em meu coração. É algo novo, é algo maravilhoso. Sinto como Deus querendo presentear ao mundo mais uma manifestação de Seu poder criador.

Primeiro fala de caminho, o que significa que é um processo sem data para terminar (não se fala em meta, em alvo, em fim do caminho...). Acrescenta que este caminho é real, isto é, concreto, palpável, visível. Ao ler isso, começamos a esperar uma descrição detalhada do caminho, mas o que vem é... que o caminho real concretiza-se, por enquanto, embora fortemente, no coração do fundador. Decepção para nós, que seguimos o caminho? De forma nenhuma! Segurança, isso sim! A teologia da vida consagrada e a hermenêutica dos fundadores ensinam que um carisma autêntico concretiza-se primeiramente no coração e na história de vida do fundador. Sem saber, o nosso estava certíssimo!

Para nos dar “água na boca”, especialmente a nós que fomos os primeiros, ele fala que o caminho é algo novo, maravilhoso, cuja descrição, pelo menos a esta altura, lhe traz alguma dificuldade e lhe faz usar a expressão sinto como: Sinto como Deus querendo presentear ao mundo mais uma manifestação de Seu poder criador.

A dificuldade de descrição é evidente. Mas são também evidentes pelo menos quatro certezas:

a de que quem está agindo é Deus

a de que “o que Deus está fazendo/ dando” é um presente imerecido

a de que o presente é para o mundo inteiro

a de que é uma manifestação do Seu poder criador

É fácil perceber o quanto estas afirmações são importantes, especialmente para nós que fomos chamados à vocação Shalom. Traz-nos uma tremenda segurança: não estamos seguindo a um homem ou a homens, estamos seguindo a Deus, em um seguimento pessoal de Jesus Cristo segundo um carisma reconhecido pela Igreja.

Além disso, somos parte de um presente de Deus para o mundo - como acontece com todo carisma autêntico na Igreja – e este carisma é uma manifestação do amor (poder!) de Deus para o mundo hoje.

Pessoalmente, sou testemunha de que todos nós, os primeiros, estávamos na mais perfeita ignorância da grandeza de tudo isso quando estas palavras foram escritas. Vivíamos os grandes desafios – e perseguições, naturalmente!- dos primeiros tempos, ancorados na fé, no amor a Deus e na certeza de que Ele era fiel, embora não soubéssemos aonde íamos nem o que nos esperava.

Mas precisamos voltar à pergunta: “Afinal, qual a novidade do Carisma Shalom para a Igreja hoje?” Para simplificar o que é imenso, amplo, misterioso, coloco o que percebemos até agora, não na teoria, mas na vida do dia a dia, ao olharmos para trás e contemplarmos os feitos de Deus em nós e entre nós.

A primeira profecia, ao meu ver, é a evangelização com ousadia, com parresia, com novos meios e métodos, sem medir esforços e empenhando nisso toda a nossa vida, tanto na Comunidade de Vida como na de Aliança. Existimos para evangelizar. Esta é nossa razão de ser. É a razão de nossa oração, a razão de nossa vida comunitária, a razão de todos os nossos esforços. Desejamos sentirmo-nos incomodados cada vez que virmos ou soubermos de alguém que não conhece Jesus. Queremos os que estão fora das igrejas, os que estão afastados da Igreja.

Lembro-me de certa feita em que um sacerdote de um outro país contava para o Moysés que, depois de muitos cálculos, havia concluído que apenas 2% dos católicos daquele país freqüentava a igreja e que, para estes 2% não precisava da ajuda da comunidade , ao que o Moysés prontamente retrucou: “Não se preocupe. Não queremos os 2% que estão dentro da igreja. Estamos interessados nos 98% que estão fora!” Estes, e, dentre eles, principalmente os jovens, são a razão de nossa existência.

Uma outra profecia é o fato de os três estados de vida – matrimônio, celibato, sacerdócio – conviverem em complementaridade sem perderem – ou, antes, para aprofundarem e viverem melhor – sua identidade própria. Nesta complementaridade que reflete a Trindade, não há privilégios. Somos todos irmãos entre irmãos, vivendo a mesma pobreza, obediência e castidade segundo cada estado de vida. Vivemos a mesma vida comunitária, a mesma contemplação, unidade e evangelização. Somos uma só família, como dizem nossos Estatutos. Somos todos irmãos entre irmãos, em um estilo de vida no qual não há privilégios para este ou aquele estado de vida, a não ser fazer-se servos uns dos outros. Não há estado de vida superior. Somos todos almas esposas de Jesus. Esta, sem dúvida, é outra profecia, em especial no início da década de 80, quando fomos fundados.

Há, ainda, algo muito belo: o conceito do que seja “amor esponsal”. Em uma visão ousada e profética, no escrito Amor Esponsal, 1984, lê-se que todos são chamados ao amor esponsal a Jesus Cristo. Os leigos, sacerdotes, religiosos, homens, mulheres, jovens, crianças, casados. É a Igreja como esposa de Cristo que se entrega a este amor de união com Ele, o Esposo, em uma visão pós-conciliar que não restringe a esponsalidade ao estado religioso. Unido aos outros aspectos proféticos, este sobressai-se em termo de novidade. Todos, em qualquer condição ou idade, em qualquer estado de vida, são chamados a acolher o inestimável dom do amor esponsal a Jesus Cristo!

Isso para não falar, evidentemente, que somos discípulos e ministros da Paz que o homem de hoje necessita: Cristo, que é a nossa paz. Por isso a Comunidade de Vida passa a manhã em silêncio e oração. Pela mesma razão, a Comunidade de Aliança tem uma hora de oração e estudo bíblico por dia: para aprender, como discípulo, diretamente do Coração de Jesus que é, segundo João Paulo II, “a obra prima do Espírito Santo”. Deste coração “aprendemos” que a Paz é Cristo e é fruto de uma experiência pessoal com o Ressuscitado que passou pela cruz. Sem a oração, nosso apostolado não é aos moldes de nossa vocação, por mais boa vontade que tenhamos, por mais bem feito que ele aparente ser.

Colhendo a paz do Coração de Jesus, somos, como em Jo 20,19ss, imediatamente enviados aos outros, aos de fora, como ministros da Paz. A nós cabe a missão de levar-lhes o Cristo Vivo, aquele a quem amamos, conduzindo-os à experiência pessoal com o Ressuscitado, a graça que transforma suas vidas. A nós cabe a missão de conduzi-los pelos caminhos da graça de forma que também eles conheçam e vivam o amor esponsal a Jesus ao qual todos os homens são chamados. Nossa evangelização tem início com o anúncio testemunhal e experiência pessoal com Cristo, nossa Paz e leva à entrega incondicional, ao amor esponsal ao Príncipe da Paz.

Costumo dizer que o Shalom é “a vocação do dar-se”, do “dar-se todo”, do “dar-se sempre”, do “dar-se irrestritamente”, do “dar-se com o coração inflamado”. Isso, em si, não é uma profecia no sentido de “novidade”, mas certamente é profético enquanto “sempre renovado” chamado a viver com novo ardor o mandamento do amor, que nos impele irresistivelmente a dar a vida pelo outro como Jesus deu a Sua.

Tentei, no espaço que tenho, dar as razões de sermos profecia para a Igreja e para o mundo hoje. Termino este artigo como que envergonhada por não ter conseguido quase nada. É que, como falo no final do livro Na Fenda da Rocha, este Carisma que o Senhor nos deu como nossa identidade mais profunda, é como um diamante multifacetado, como um cristal em cujas três faces se escondem outras três mil. Impossível descrevê-lo, impossível, retê-lo, impossível contê-lo, impossível apossar-se dele. Como um fugidio raio de luar que não se consegue segurar, ultrapassa-nos tão altamente que nos leva a exclamar, estupefatos: “Bendito sejas Tu, Senhor, por te manifestares assim a nós, por usares tão maravilhosamente instrumentos tão pequenos e pobres, Tu que és o Deus Altíssimo e Todo Poderoso, insuperável em amor e bondade!”